EUROPA. As agressões empreendidas por Andorra e Rússia desde agosto contra a Europa apresentam o primeiro grande desafio ao acordo securitário que assegura desde 2019 a estabilidade da região. A capacidade do Congresso de Füssen em direção de coordenar uma resposta a estes movimentos será crucial para o futuro do continente e da própria instituição.
Congresso de Füssen: breve histórico
O arranjo securitário europeu consolidado no Congresso de Füssen completou sem muita fanfarra dois anos em agosto, tendo nesse tempo cumprido seu objetivo de estabilizar as relações regionais e reduzir a ansiedade política na região. Ao conjugar os diversos estados europeus em torno de um compromisso mútuo de segurança internacional movido à base de decisões democráticas e colegiadas, o Tratado do Neuschwanstein efetivamente anulou a possibilidade de que estados quaisquer pudessem impunes lançar mão de manobras expansionistas que promovessem alterações na configuração territorial e geopolítica da Europa, solidificando assim a Pax Europaea que se fundamenta em um firme framework de direito e cooperação internacionais.
A origem do acordo continental está na série de conflitos travados entre Alemanha e França quando Paris, lá em 2017, ao lançar sua plataforma de ressignificação internacional, buscou anexar, primeiro, a Suíça, e depois Bélgica e Holanda. O objetivo dessa expansão era consubstanciar a autopromoção da França à dignidade imperial, patrocinada na época por setores reacionários da política francesa que haviam se apossado de seu governo e que pretendiam refundar o estado francês à moda napoleônica.
Do outro lado do Reno, ao se esforçar para preservar o status quo na Europa, a Alemanha empreendeu ferrenha oposição à ambição imperialista francesa, que culminou com a ocupação, por quase dois anos, de parte do território vizinho da Borgonha, com o eventual estabelecimento de um novo estado na Bélgica-Holanda, a Batávia, e com a reversão final da decisão do governo francês de assumir o status de império.
O eixo russo-andorrano e o fim da tranquilidade na Europa
Ao completar dois anos de relativa paz e sucesso do funcionamento do Congresso de Füssen, a agremiação se depara com renovados desafios à medida em que Andorra e Rússia dão espaço a um novo imperialismo que pretende ver expandida a influência política de ambos os países às custas de seus parceiros europeus. Na impossibilidade de se utilizar as ferramentas tradicionais de poder, isso é, de agregar mais território para afirmar sua preeminência, o neoimperialismo russo-andorrano procura novas vias para calçar a ambição de seus governantes.
Em 20 de agosto, o parlamento do Principado de Andorra emitiu proclamação pretendendo elevar o país à estação de alto império, muito à imagem do que a França tentara fazer quatro anos antes. A diferença aqui é que, impedida pelos tratados europeus de segurança coletiva de anexar qualquer território no continente, Andorra preferiu acolchoar suas aspirações conferindo a seu chefe de estado dois novos títulos: de Rei dos Visigodos e de Marquês da Hispânia. Em paralelo, seus agentes passaram a assediar oficiais espanhóis, tentando obrigar Madri a ceder a Andorra a região da Catalunha. É preciso que compreendamos o subtexto para enxergarmos que a motivação política por trás da nova titulação era na verdade declarar que o novo império andorrano possuía ascendência política e cultural sobre toda a península ibérica – a Hispânia onde se encontram os reinos da Espanha e de Portugal, ambos soberanos -, e também sobre o sudeste francês, região outrora habitada pela tribo germânica dos visigodos, de quem o príncipe andorrano passou a se declarar rei.
Dias depois, veio da Rússia movimento similar. Em posse da cidade de Constantinopla, distrito de Istambul, desde sua cessão pelo Reino do Barin, o czar russo adotou o título de Basileu – rei – dos Romanos. A justificação apresentada foi emular a titulação adotada pelos imperadores bizantinos, e de copiar o feito empreendido por Mehmet o Conquistador depois de tomar a Rainha das Cidades em 1453. Ocorre que tanto bizantinos quanto otomanos fizeram o uso histórico daquele título porque o legítimo Império Romano havia efetivamente desaparecido em 476 quando Odoacro depôs o último imperador no ocidente, Rômulo Augusto. Micronacionalmente, contudo, é consenso que o Reino da Itália seja o estado política e culturalmente posicionado como herdeiro do legado romano, sendo portanto a reclamação russa uma contestação direta dessa condição.
A contenção do neoimperialismo
É curioso que os movimentos russo e andorrano não sejam apenas similares em conteúdo e forma, mas também tenham ocorrido em um intervalo de poucos dias, praticamente coordenados. Neles está sintetizada a práxis do neoimperialismo daquele eixo, que substitui o hard power tradicional por uma forma menos óbvia ou ostensiva de dominação: a cultural. Para justificar suas aspirações imperiais, Rússia e o médio império de Andorra procuraram se locupletar reivindicando títulos que fazem referência a um legado cultural e político que nem de longe guarda relação com qualquer dos dois estados, e ao fazê-lo agrediram ou violaram o espaço cultural preferencial da França, da Espanha e da Itália, seus parceiros europeus.
A reação da comunidade europeia foi rápida. A Itália protestou firmemente no Congresso de Füssen, levando a Rússia a ser suspensa da agremiação depois de longa sessão presencial onde se firmou o entendimento que títulos, em uso ou ainda latentes, relacionados ao patrimônio cultural de quaisquer de seus membros integram indiscutivelmente o capital soberano desses estados, entendendo-se assim que a violação desse patrimônio cultural constitua à luz do direito internacional uma violação da soberania do respectivo estado.
A exemplo da delegação italiana, o monarca espanhol também alojou protesto contra o movimento andorrano, mas o caso não chegou a ser analisado em plenário porque o monarca andorrano se evadiu das inevitáveis consequências políticas ao denunciar o tratado constituinte do Congresso, sendo posteriormente seguido por seu comparsa russo.
A coordenação da comunidade internacional em oposição ao novo imperialismo do eixo russo-andorrano foi suficiente para pressionar os dois governos a reverterem a reivindicação de títulos que violava Itália, França e Espanha. O príncipe andorrano aboliu os títulos de marquês da Hispânia e rei dos Visigodos em 23 de agosto, e o monarca russo, depois de remendar o título de basileu dos romanos no início de outubro, estranhamente convertendo-o à cultura seljúcida, sustou finalmente também este último ajuste, cancelando inteiramente seu avanço sobre o patrimônio italiano e dobrando-se ao bom senso internacional.
Perspectivas para o continente europeu
O sucesso da contenção dos movimentos de Rússia e Andorra deve ser creditado ao firme alinhamento dos estados membros do Congresso de Füssen ao objetivo de preservar a integridade regional e ao compromisso de se oporem a quaisquer movimentos que busquem desestabilizar a Europa, o que evidencia como está arraigada na diplomacia continental o espírito do tratado firmado em Füssen em 2019. Convém aqui também destacarmos a importância do fato político que foi a confirmação do entendimento da agremiação europeia no sentido de considerar que a titulação latente que seja referente ao legado político e cultural seja parte constituinte do seu patrimônio soberano, e que portanto a sua preservação está subsumida no compromisso securitário europeu.
Lançadas à periferia do sistema internacional e moralmente indigentes, Rússia e Andorra seguem contudo representando uma grave ameaça à estabilidade regional. A invasão do Ducado Báltico empreendida por Moscou em violação do direito internacional, assim como as inconstantes regulamentações baixadas pelo czar com o intuito de reforçar seu domínio sobre a Polônia significam que os problemas ainda não foram inteiramente resolvidos. Ademais, ainda que o Principado de Andorra tenha buscado manter um low profile e permitido que a Rússia arcasse até agora com a maior parte do desgaste à imagem do bloco, é evidente que os dois chefes de estado tem atuado em concerto e auxílio mútuo desde o lançamento de suas investidas em agosto passado.
O reforço representado pelas adesões de Albion, Bugolávia e Bulgária aos tratados europeus significa que o Congresso de Füssen permanece a sede referencial da articulação internacional europeia a despeito dos ataques desorganizados desferidos pelo eixo russo-andorrano contra sua imagem. Caberá à comunidade europeia, reunida em torno do Congresso e com apoio de estados de outras regiões do globo, manter-se atenta aos movimentos daquele eixo no continente, pronta para empreender se necessário medidas mais enérgicas com vistas a preservar a concórdia no continente e enfim evitar que a Europa regrida à trágica situação de 2017.
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